terça-feira, 31 de agosto de 2010

D.A. Carson: A Dificil Doutrina do Amor de Deus

Trechos Selecionados

1)B. Algumas diferentes maneiras da Bíblia falar do amor de Deus

Eu considero que é melhor avisá-lo que nem todas as passagens a que me refiro realmente usam a palavra amor. Quando falo da doutrina do amor de Deus, estou a incluir temas e textos que retratam o amor de Deus, mesmo sem nunca usar a palavra, assim como Jesus proferiu parábolas que descreviam a graça sem usar essa palavra.

Com esse prévio alerta, eu chamo sua atenção para cinco maneiras distintas da Bíblia falar do amor de Deus. Esta não é uma lista exaustiva, mas é heuristicamente útil.


(1) O amor peculiar do Pai para o Filho, e do Filho para com o pai. O Evangelho de João é particularmente rico nesse tema. Duas vezes nos é dito que o Pai ama o Filho, uma vez com o verbo agapao (João 3:35), e uma vez com phileo (João 5:20). Ainda assim, o evangelista também insiste que o mundo deve saber que Jesus ama o Pai (João 14.31). Esse amor intra-trinitário de Deus, não apenas distingue o monoteísmo cristão de todas os outros monoteísmos, mas também está ligado de forma surpreendente com a revelação e a redenção. Voltarei a este tema no próximo capítulo.


(2) O amor providencial de Deus sobre tudo o que ele fez. De um modo geral a Bíblia se afasta muito de usar a palavra amor, neste contexto, mas o tema não é difícil de encontrar. Deus criou tudo, e antes que houvesse um sopro do pecado, Ele pronuncia tudo o que Ele fez como sendo "bom" (Gn 1). Este é o produto de um Criador amoroso. O Senhor Jesus descreve um mundo no qual Deus veste a erva dos campos com a glória de flores silvestres talvez não vista por nenhum ser humano, mas vista por Deus. O leão ruge e se lança sobre sua presa, mas é Deus que alimenta o animal. As aves do céu encontram comida, mas isso é o resultado da amorosa providência de Deus, e nenhum pardal cai do céu aparte da sanção do Todo-Poderoso (Mt 6). Se isso não fosse uma benevolente providência, uma providência de amor, então a lição moral que Jesus está ministrando, isto é, que pode-se confiar neste Deus para provisão de seu próprio povo, seria incoerente.

(3) A postura salvífica de Deus para com Seu mundo caído. Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho (João 3:16). Eu sei que alguns tentam tomar kosmos ("mundo") aqui para se referir aos eleitos. Mas essa palavra realmente não tem essa referência. Todas as evidências do uso da palavra no Evangelho de João é contra a sugestão. Na verdade, o mundo em João se refere mais à maldade do que à grandeza. No vocabulário de João, o mundo é essencialmente a ordem moral em rebelião intencional e culposa contra Deus. Em João 3:16 o amor de Deus ao enviar o Senhor Jesus é para ser admirado, não porque é estendido a algo tão grande como o mundo, mas a algo tão ruim como o mundo; mais por ser estendido a pessoas más do que a muitas pessoas. No entanto em outro lugar João pode falar de "todo o mundo” (1 João 2:2), trazendo unidas a grandeza e a maldade. Mais importante ainda, na teologia de João os próprios discípulos uma vez pertenceram ao mundo, mas foram tirados dele (por exemplo, João 15:19). 

Neste eixo, o amor de Deus para o mundo não pode ser colapsado dentro de Seu amor pelos eleitos. A mesma lição é aprendida a partir de muitas passagens e temas nas Escrituras. Apesar de Deus permanecer em juízo sobre o mundo, ele também se apresenta como o Deus que convida e ordena a todos os seres humanos a se arrependerem. Ele ordena que seu povo a levar o Evangelho aos mais distantes cantos do mundo, proclamando-o para homens e mulheres em toda parte. Para os rebeldes o soberano Senhor chama “Dize-lhes: Tão certo como eu vivo...não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois, por que razão morrereis, ó casa de Israel?”(Ezequiel 33:11)9

(4) O particular, eficaz e seletivo amor de Deus para com seus eleitos. A eleição pode ser de toda a nação de Israel ou da Igreja como um corpo ou indivíduos. Em cada caso, Deus dispõe o seu afeto aos seus escolhidos de uma forma que ele não faz aos outros. Ao povo de Israel é dito: “Não vos teve o SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito”(Deut. 07:07 -8; cf. 4:37). Mais uma vez: “Eis que os céus e os céus dos céus são do SENHOR, teu Deus, a terra e tudo o que nela há. Tão-somente o SENHOR se afeiçoou a teus pais para os amar; a vós outros, descendentes deles, escolheu de todos os povos, como hoje se vê.”(10:14-15).

A coisa impressionante sobre estas passagens é que, quando Israel é comparado com o universo e com as outras nações, a característica distintiva não tem nada de mérito pessoal ou nacional; não é nenhuma outra coisa senão o amor de Deus. Na própria natureza do caso, então, o amor de Deus é direcionado para Israel nestas passagens de um modo que não é direcionado para outras nações.

Obviamente, esta maneira de falar do amor de Deus é diferente das outras três maneiras que nós temos visto até aqui. Esta característica discriminante do amor de Deus surge freqüentemente. “Eu amei Jacó, mas odiei Esaú” (Malaquias 1:2-3), declara Deus. Concedo todo o espaço a você que gosta da natureza semita deste contraste, observando que a forma absoluta pode ser uma forma de articular preferência absoluta, mas o fato é que o amor de Deus em tais passagens é particularmente dirigido para os eleitos. Da mesma forma, no Novo Testamento: Cristo “amou a igreja” (Efésios 5:25). Repetidamente os textos do Novo Testamento nos dizem que o amor de Deus ou o amor de Cristo é direcionado para aqueles que constituem a igreja. Para este assunto voltarei no quarto capítulo.

(5) Finalmente, o amor de Deus é dito às vezes ser dirigido para o seu povo de uma maneira provisional ou condicional - condicionada, isto é, à obediência. Faz parte da estrutura relacional de conhecer a Deus; não tem a ver com como nós nos tornamos verdadeiros seguidores do Deus vivo, mas com a nossa relação com Ele, uma vez que o conhecemos. “Conservai a vós mesmos no amor de Deus”, Judas exorta os seus leitores (v. 21), deixando a impressão inconfundível de que alguém pode não se manter  no amor de Deus. Claramente esse não é o amor providencial de Deus; é muito difícil escapar a isso. Esse também não é o amor enternecido de Deus, refletindo a sua postura salvífica para a nossa raça caída. Nem é esse seu eterno e eletivo amor.

Judas não é o único que fala em tais termos. O Senhor Jesus ordena aos seus discípulos a permanecer no seu amor (João 15:09), e acrescenta: "Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor" ( João 15:10).

Eu traçarei uma débil analogia: Embora haja um sentido em que o meu amor por meus filhos é imutável, assim Deus me ajude, independentemente do que venham a fazer, há outro sentido em que eles sabem muito bem que eles devem permanecer no meu amor. Se, por nenhuma boa razão os meus adolescentes não chegarem em casa até a hora que eu determinei, o mínimo que eles experimentaram é um grito, e eles podem receber sobre eles algumas sanções restritivas. Não há nenhum uso lembrando-lhes que eu estou fazendo isso porque eu amo eles. Isso é verdade, mas a manifestação do meu amor por eles, quando eu os repreendo e quando eu saio com eles para uma refeição ou para assistir a um dos seus concertos ou para levar o meu filho para pescar ou a minha filha em uma excursão de algum tipo é bastante diferente no dois casos. Apenas este último vai se sentir muito mais como permanecendo no meu amor do que caindo sob a minha ira.

Nem é esse um fenômeno do novo pacto somente. O Decálogo declara que Deus ser aquele que demonstra o seu amor "até mil gerações àqueles que me amam e guardam os meus mandamentos" (Êx 20:06).

Sim, “o Senhor é misericordioso e compassivo, lento para a cólera, cheio de amor" (Sl 103:8). Neste contexto, o amor é colocado contra a sua ira. Ao contrário de alguns outros textos que vamos analisar, o seu povo viver sob o seu amor, ou sob sua ira, em função da sua fidelidade pactual:

“Não repreende perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira. Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniqüidades. Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem ...Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem....Mas o amor do SENHOR é de eternidade a eternidade, sobre os que o temem ….para com os que guardam a sua aliança e para com os que se lembram dos seus preceitos e os cumprem.”(Sl. 103:9-11,13,17-18).

Esta é a linguagem do relacionamento entre Deus e a comunidade do pacto.

D.A. Carson, The Difficult Doctrine of the Love of God (Wheaton Illinois: Crossway Books, 2000), 16-21. [Footnote values original; underlining mine.]

2) Se o amor de Deus é exclusivamente retratado como convidando, anelando, buscando o pecador, ao invés de um ardor apaixonado, nós podemos fortalecer as mãos dos arminianos, semi-pelagianos, pelagianos, e aqueles mais interessados na vida emocional interior de Deus do que em Sua justiça e em Sua glória, mas o custo será enorme. Há alguma verdade nesta imagem de Deus, como veremos, uma verdade gloriosa. Tornada absoluta, no entanto, não somente trata textos complementares, como se eles não estivessem lá, mas também roubam de Deus a soberania e de nós a segurança. Eles defendem uma teologia da graça um pouco diferente da teologia da graça de Paulo, e na pior das hipóteses, acabam com um Deus tão insípido que não pode nem intervir para nos salvar, nem usar sua vara de castigo contra nós. Seu amor é demais "incondicional" para isso. Este é um mundo muito distante das páginas da Escritura.

Se o amor de Deus se refere exclusivamente ao seu amor para os eleitos, é fácil ser impelido para uma bifurcação simples e absoluta: Deus ama os eleitos e odeia os réprobos. Corretamente colocada, há verdade nesta afirmação; despida das complementares verdades bíblicas, a mesma afirmação gerou o hiper-calvinismo. Eu uso o termo deliberadamente, referindo a grupos dentro da tradição reformada que proibiram a livre oferta do Evangelho. Spurgeon lutou contra eles em seus dias.10 O seu número não é grande na América de hoje, mas os seus ecos são encontrados em jovens ministros reformados que sabem que é correto oferecer o Evangelho livremente, mas que não têm idéia de como fazê-lo sem violar algum elemento de sua concepção da teologia reformada.11

D.A. Carson, The Difficult Doctrine of the Love of God (Wheaton Illinois: Crossway Books, 2000), 22-23. [Footnote values original; underlining mine.]

3) Em suma, nós precisamos de tudo o que a Bíblia diz sobre este assunto, ou os desdobramentos doutrinais e pastorais irão se revelar desastrosos. (2) Não devemos ver estas maneiras de falar do amor de Deus, como independentes, compartimentadas, amores de Deus. Não ajudará começar a falar muitas vezes sobre o amor providencial de Deus, seu amor eletivo, seu amor intra-trinitário, e assim por diante, como se cada um estivesse hermeticamente fechado do outro. Também não podemos permitir que qualquer uma dessas maneiras de falar sobre o amor de Deus seja diminuída pelas outras, assim como não podemos, sobre a evidência bíblica, permitir a qualquer uma delas domesticar todas as outras. Deus é Deus, e Ele é um. Não só temos que gratamente reconhecer que Deus na perfeição de sua sabedoria tem considerado como o melhor nos prover com essas várias maneiras de falar do Seu amor se quisermos pensar Nele corretamente, mas temos de manter essas verdades juntas e aprender a integrá-las em bíblica proporção e equilíbrio. Devemos aplicá-las às nossas vidas e às vidas daqueles a quem ministramos com discernimento e sensibilidade moldada pela forma como estas verdades funcionam nas Escrituras.

D.A. Carson, The Difficult Doctrine of the Love of God (Wheaton Illinois: Crossway Books, 2000), 23.

Notas:

9The force of this utterance is not diminished by observing that it is addressed to the house of Israel, for not all in the house of Israel are finally saved; in Ezekiel’s day, many die in judgment.
10See Iain H. Murray, Spurgeon and Hyper-Calvinism (Edinburgh: Banner of Truth, 1995).
11There are echoes as well in R. K. McGregor Wright, No Place for Sovereignty (Downers Grove, Ill.: Intervarsity Press, 1996).


Fonte: http://calvinandcalvinism.com/?p=1301
Tradução:  Emerson Campos Pinheiro.

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